Desde pequena ouvia meu pai dizer que o importante era ter estabilidade profissional, fazer carreira na mesma empresa, ter carteira assinada e se aposentar com tranquilidade. O lado pessoal acompanhava neste ritmo, pois nunca mudávamos de residência já que a casa era própria, os aniversários eram lá e viajávamos sempre para o mesmo lugar. Tudo era rotineiro, organizado e, aparentemente, permanente.
Nem mesmo a doença neurológica da minha mãe quebrava a nossa falsa impressão de permanência.
Isso durou até eu ser demitida do emprego que fiquei mais tempo – cinco anos – a partir daí, no meu vocabulário a palavra impermanência começou a fazer muito sentido.
Da mesma maneira foi a minha história com o Daniel ou Dan como eu chamava – completamente imprevisível. Uma amiga foi nossa cupida virtual e trocou nossas fotos pela internet, porém não me contou. Ele se encantou por mim e eu por ele, mas resistente achei que ele não era para mim, pois tínhamos uma distância de 11 anos. Seríamos como “Eduardo e Mônica” da Legião Urbana numa versão mais adolescente.
Os dois em comum acordo mentiram a idade dele. Eu acreditei até o dia que ele me contou. O Dan sempre teve algum magnetismo que eu não sei explicar e quando o conheci compreendi imediatamente que não existia um menino, e sim um homem. Embora o preconceito fosse muito forte em nossa relação, namoramos por algum tempo.
Neste período descobri um ser humano lindo que sabia exatamente o que queria, que preenchia o espaço dele e de quem estivesse ao seu lado com risadas, brincadeiras, colo e muito amor. Foi quem quebrou a minha barreira de receber carinho. Que fez eu identificar que toque e afeto eram possíveis, bons e que ninguém saia ferido por isto.
Ele me incentivava a ser o que eu quisesse, porque além de me amar de um modo muito puro e doce, me admirava, respeitava e via em mim potenciais que naquela época nem eu mesma enxergava.
Durante o nosso namoro eu vivi um dilema – aceitar que eu estava completamente apaixonada por uma pessoa muito mais nova ou terminar e agradar grande parte da minha família. Logo eu que era tão constante, que não sabia lidar com mudanças ficar perdidamente apaixonada por alguém tão mais novo e que não me proporcionaria a tal segurança sempre mencionada nos jantares de casa. E a questão nem era financeira, era de estabilidade com alguém que fosse certo para mim – como se o certo existisse….
Foi ele quem resolveu este impasse de forma muito racional – terminou o nosso relacionamento por sentir que não seria bom para nós. Sua ânsia de desbravar o mundo, viver intensamente, curtir a vida, tocar bateria na sua banda era muito forte e ele não queria me magoar com isto, portanto, a solução foi o fim.
Lá estava a impermanência batendo em minha porta novamente.
Matias Aires, um dos grandes humanistas luso-brasileiros do século XVIII mencionou em seu livro – Reflexões sobre a vaidade dos homens – “ Em nada podemos estar firmes, pois vivemos no meio de mil revoluções diversas: as idades, e a fortuna continuamente combatem a nossa constância…Tudo nos é dado por um certo tempo; em breves dias, e em breves horas se desvanece a razão da novidade, que nos fazia apetecer; fica invisível aquele agrado, que nos tinha induzido para desejar. ”
Neste mundo da internet e da velocidade das coisas tudo nos é dado por um certo tempo, tempo este bem menor do que antigamente. O que era seguro agora pouco já não faz sentido minutos depois e assim seguimos.
Só que pessoas afins não partem da vida uma da outra e o Universo dava sempre um jeitinho de fazer a gente se reencontrar – ora em sonhos, ora em locais comuns. E por conta disto, começamos, de tempos em tempos, a nos encontrar para falar sobre a vida, dizer sobre nossos planos, aconselhar, compartilhar, trocar, nos ouvir e coexistirmos.
Isto aconteceu por alguns anos até ele encontrar o amor de sua vida. E eu tive certeza que seria para sempre. Por um lado, lamentava em não poder participar daquele momento de felicidade dele, mas vibrava muito porque sabia que estava feliz e que existia muito afeto ali.
Eu acredito no amor, sempre acreditei, não só entre dois corações apaixonados, mas naquele sentimento claro como a água cristalina que deseja o bem para o outro mesmo sabendo que isto significa ficar distante daquela pessoa. E por isto eu digo que sempre o amei.
Depois de alguns anos eu tive um sonho, mais uns daqueles que me fazia procurá-lo para saber se estava tudo bem e foi justamente quando eu soube que seu pai havia falecido.
Neste dia, conversamos sobre uma série de coisas e entre elas sobre o nosso afastamento na vida um do outro. Chegamos a conclusão de que é algo natural, mas que a nossa amizade, respeito, cumplicidade e admiração mútuas seriam sempre algo presente em nossos corações.
Como nada nesta vida é eterno ou pleno foi no começo de 2018 que a palavra câncer estremeceu a minha alma. Não pela doença em si, mas porque foi justamente no aniversário dele que eu soube de seu diagnóstico – um tumor cerebral maligno inoperável. Para ele era apenas um momento de refletir sobre sua vida, fortalecer sua fé e renovar seu espírito.
Para mim, era a impermanência batendo na porta da constância e dizendo que não dava para querer que tudo fosse sempre igual e que quanto mais resistimos, pior sentimos. O fato dele estar doente me fazia querer ficar mais próxima para que eu pudesse contribuir efetivamente naquele momento de dúvidas, reflexões, inconstâncias e revoltas que ele pudesse ter.
“ Num sentido mais profundo, podemos entender que a impermanência está ligada a outras formas de compreensão, então, quando nós compreendemos de um certo jeito, aquilo existe por um tempo, depois aquela compreensão pode virar outra coisa..” Lama Padma Samten, no retiro “Ação no Mundo como Caminho de Lucidez”. Como eu queria que aquela minha compreensão pudesse virar outra coisa mais otimista e feliz…
Entender que a alegria, a tristeza, o sofrimento ou a felicidade presente são apenas momentos e que tudo passa, demanda tempo e paciência. E uma dose de sabedoria, que muitos de nós muitas vezes não conseguem atingir, principalmente quando o tema é vida ou o fim dela.
Acordamos de nos falar todo fim de mês, quando o resultado dos exames mostrassem o próximo passo a ser dado rumo a sua cura, porque sim ele era o Dan, o cara dos sonhos possíveis e acreditávamos em sua recuperação.
A nossa rotina foi esta durante 7 meses consecutivos. Até ele piorar e eu falar novamente sobre a possibilidade de encontra-lo. Neste dia, ele reforçou sobre o quanto desejava meu bem e que sabia que eu desejava o mesmo a ele. Se prontificou a conversar com a esposa para dizer que eu ia visitá-lo, mas conhecendo-o como conhecia, garanto que ele arrumou uma forma educada de não me deixar desanimada, mas não iria falar com ela.
Em dezembro de 2018 a dona impermanência bateu em minha porta logo cedo, no dia 01 pela manhã. Ele não estava nada bem e não havia mais o que ser feito. Meu coração estremeceu novamente e desta vez por mais que eu compreendesse as nossas impermanências eu queria congelar o tempo para que não fosse verdade.
Consegui visitá-lo no dia seguinte e bati um papo bem tímido naquele quarto todo elegante e confortável. O Dan sabia o que era bom, não poderia ficar em qualquer suíte de hospital. Bem baixinho eu disse que estava tudo do jeito que ele gostava – amigos, família, muito amor e que tudo daria certo. Não sei se ele me ouviu, mas meu coração ficou em paz, deu tempo de dizer tchau.
Dois dias depois ele partiu. E isto fez eu rever rapidamente minha jornada. Por mais dolorido que seja ver alguém seguir sua viagem é muito egoísmo querermos impedir que isto aconteça.
Embora o efêmero exista o sentimento que temos por alguém quando é verdadeiro não muda. Sendo aqui ou em outra esfera.
Não foi o câncer que venceu foi ele quem escolheu a liberdade. Sabemos muito pouco sobre quem somos. E menos ainda o que é melhor para nós. Costumamos nos apegar no “ter” abandonando muitas vezes o “ser” deixando que nossas vulnerabilidades e fragilidades sejam engolidas com a falsa ideia de que temos que cumprir uma série de coisas que muitas vezes não fazem o menor sentido.
Ainda me pego pensando em nossas últimas conversas, em tudo o que ele me disse sobre eu seguir meu caminho e continuar a fazer aquilo que eu amo. E em toda ternura que envolvia esta relação. O que eu sei neste caso é que nada mudará, porque a única coisa permanente é o amor.
Ele continua sendo o menino dos sonhos possíveis e eu a expectadora que aplaude na primeira fileira.
Simplesmente lindo e verdadeiro….
Agradeço pelas palavras <3
Adorei. Amizade verdadeira gera essa ligação de amor ou ao contrario. O Dani tinha essa capacidade de gerar laços fortes com as pessoas. Quero acreditar que ele se foi pq o tempo dele aqui tinha acabado e que onde ele estiver será feliz. Bjs
Minha querida Elvira! Se ele é este ser de luz é porque teve a quem puxar. Sou imensamente grata a todo carinho, respeito e amor que esta família sempre me deu. Ele mudou de lugar, mas me deixou você e a Luana para que eu continue a jornada por perto. Tenho certeza que logo logo teremos notícias dele, seja por sonho, por mensagem ou qualquer outra coisa. E enquanto puder, estarei com vocês! Beijos
A impermanência tem sido a grande lição e o grande presente da minha vida…. Adorei. Quanta sensibilidade.