Das minhas dores
Ficar com o meu pai em finais de semana alternados está pedindo de mim virtudes que me faltam…e cobranças que me sobram.
Embora a doença (Alzheimer) cause sintomas como irritabilidade, agressividade e mais algumas coisas, ele não apresentou até o momento estas características de forma expressiva. Sorte a nossa. Sorte? Não sei se esta patologia pode ser encarada como “sorte”.
O fato é que ninguém espera ou está preparado para ter um ente querido com um diagnóstico destes, mas desde que soubemos eu me tornei a filha mais chata e brava. Qualquer pessoa que converse com ele mais do que 5 minutos vai ouvir que a Keila é a filha brava. E devo ser mesmo. Excesso de proteção…
Para quem nunca conviveu com alguém que tem esta doença, vou facilitar o entendimento: é como se fosse uma criança grande que no início tem a mesma consciência de um adulto e que, com o passar do tempo, se torna mais dependente e repetitivo, repetitivo, repetitivo, faz arte, conta várias vezes as mesmas histórias do passado, teima, mas também se diverte com pouco, muito pouco (pelo menos ele)…já disse que é repetitivo? Puxa, desculpe a insistência!
Também muda de comportamento quando eu chego e ele está com alguém diferente: cuidadora, fisioterapeuta ou qualquer “outro” que não seja eu. Tem a tendência de implicar, principalmente comigo. Qualquer coisa que eu comente ele vai teimar que não é aquilo e que eu não entendo. E fica bravo.
Recomendação do médico: não contrariar, entrar na história dele e concordar com tudo. Só que eu entro em conflito porque penso – se eu não corrigi-lo ele vai decorar o errado e começar a achar que o certo é o que ele está falando e ai nunca mais ele vai lembrar do certo.
E qual é o certo numa hora destas?
Eu querer enfiar goela abaixo a minha verdade ou deixar ele pensar o que quiser?
É dolorido. Difícil. Cansativo. Estranho. Delicado. E doce.
Vê-lo “encriançando” (sei que este termo não existe, mas não quero usar “infantilizado”) me dá por um lado a esperança de que na minha velhice eu possa ser mais leve e menos preocupada e por outro lado, nostalgia. Porque não sei até onde esta doença irá avançar e o que mais ele pode perder pelo caminho e eu sei que terei saudade de quem ele foi.
Às vezes, cobro uma postura minha que eu nem sei se tenho. Exijo comportamentos meus que não existem em mim ou se existem ainda não descobri. Outras vezes, (ultimamente com maior frequência), preciso mentir para ele, pelo seu bem, mas não gosto. E peço perdão mentalmente. E peço arrego. Colo. Ajuda. Mas acredito que a vida goste de brincar com a gente, pois é sempre em momentos destes que me sinto completamente sozinha.
Porque é algo meu e dele. É a nossa história. É o nosso acerto de contas. É tudo aquilo que aprendi com a minha mãe a ser colocado em prática. E mais ainda, ser um pouquinho do exemplo de pessoa que ela foi.
Estes conflitos internos se deparam com quem eu sou hoje. Com tudo aquilo que eu almejo para a minha vida e com tudo aquilo que ainda me falta.
Esta falta que dói
Como o vídeo da Jout Jout sobre a falta. Esta falta que dói, mas que quando vai embora nos sentimos aliviados. Esta falta que corremos atrás, mas depois nos damos conta que a parte que falta é aquilo que está dentro de nós e ainda não descobrimos. Esta falta que é tudo o que nós queremos e quando temos já não sabemos.
Viver com alguém doente é ser um pouco médico, um pouco louco, um pouco doente também. É ser mãe, pai, filha, criança e idoso. É sentir tudo, de raiva a amor, sobrevoando por todos os outros sentimentos que possam estar perdidos por entre eles.
Apesar de tudo, viver com o seu pai diagnosticado com Alzheimer é saber que tudo o que fizermos hoje, poderá não ser lembrado por ele daqui a cinco minutos, mas o sentimento ficará guardado para sempre.
**este texto saiu numa edição virtual da Revista Vida Simples na época em que a editoria era feita pela Editora Caras